"Antes água suja do que a falta dela"
"A água veio, de enxurrada, pela encosta abaixo", arrastou terras calcinadas, cinzas e cascalho e "só podia ficar preta", como José Aires, de 30 anos, "nunca tinha visto". Nem o seu pai, que "já vai nos 79" e também é pastor. Chuvas fortes "sempre as houve, graças a Deus", mas incêndios na serra como os deste Verão é que não. E "eles é que dão esta cor à água do rio".
Pastor desde os 12 anos, José Aires só tem "a quarta classe", mas percebe bem o fenómeno o fogo queimou a vegetação, deixou negras e nuas as encostas e, agora, "nada segura a água". Enquanto "a terra não amolecer, a chuva não se entranha e leva tudo à frente".
"O chão está preto e a água não pode ter outra feição". Nem as margens dos veios que correm para o Zêzere, diz António Caetano, 49 anos, exemplificando com a ferrugem acumulada nas empapadas terras ribeirinhas da zona onde o leito abranda e se espraia, para recuperar dos sobressaltos que o precipitam, violento, até ali.
Residente na Covilhã, António Caetano também "passa épocas com os animais" nas encostas do vale glaciar. "Desta vez, vai para duas semanas", mas ainda tem da água que trouxe de casa, para beber. Não tardará, no entanto, acredita, "o chão ficará lavado" e a água recuperará a pureza. "Os peixes poderão sofrer alguma coisa", mas antes assim "Sem ela, nem eles nem a gente se governa."
"Mais vale a água suja que a falta dela", afirma, convicta, Josefa Pereira, 77 anos. "Esta chuva é abençoada". Mas "ainda é pouca", acrescenta a proprietária de uma loja de roupa, em Manteigas. "Quando me criei não chovia assim dois ou três dias mas semanas seguidas". As cinzas podem afectar o peixe, admite Armando Neves, empregado num café da vila, "mas a seca é muito pior, para ele, para o ambiente e para nós".
Nas três ribeiras que atravessam Manteigas, "a água vai suja", mas nas torneiras "sai limpa". A captação é feita na nascente que abastece, igualmente, a "fábrica" das águas de mesa Glaciar, lembra o presidente da câmara. O fogo não atingiu esta área, mantendo cristalina a "barroca" - assim são, localmente, designadas as nascentes e/ou riachos.
O estado da água não é a principal preocupação de José Biscaia. Importante, agora, é reflorestar e criar "meios que previnam derrocadas", designadamente na EN338, via que acompanha o vale glaciar e que desde domingo está intransitável. A chuva, o nevoeiro e o vento forte continuam a sentir-se na região, mas nem por isso operários e máquinas param de tentar desobstruir a estrada e de prevenir anunciadas quedas de terras e pedras, algumas com toneladas de peso. O fogo abriu-lhes caminho, a chuva tirou-lhes o equilíbrio, explica o operador de uma escavadora. E só quando não houver perigo de derrocada será reaberta ao trânsito a via turística que liga a Nave a Manteigas.